Revisitando um Clássico: Engenheiros do Hawaii – GLM (1992)

“Nesses tempos de indigência estética, sai mais uma obra para nos causar dor de cabeça. Sai na praça ‘GLM’, 7o disco da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii. As músicas são furibundas, como todo trabalho desses gaúchos. As letras, gongóricas e incompreensíveis, também cheias daquelas expressões chulas e desgastadas, que o populacho convencionou chamar ‘trocadalhos do carilho'”

O trecho acima faz parte de uma crítica da Folha de São Paulo de 30/10/92, imediatamente depois do lançamento de “GLM”, considerado por público e crítica (embora essa última tenha feito um reconhecimento apenas tardio) a obra-prima dos Engenheiros do Hawaii. É um trecho bastante rico, pois revela muito acerca da maneira como a banda era vista no cenário nacional e também destaca, de forma quase que involuntária, diversos aspectos do álbum que valem a pena ser detalhados.

Em relação à banda. A explosão do rock brasileiro dos anos 80 se deu com o desenvolvimento de três grandes cenas: São Paulo, Rio e Brasília. As três deram ao país grupos que buscavam explorar ou a atitude “Do It Yourself”, emprestada do punk, ou a procura por uma “brasilidade” em seus discos. Nesse sentido, os Engenheiros sempre foram vistos como “Outsiders”, pela temática ortodoxa de suas letras, pela sua origem gaúcha (citada duas vezes apenas nesse pequeno trecho) e pela complexidade de seus arranjos. A banda sempre teve ampla aceitação nos círculos populares, mas até o seu hiato em 2008 sempre recebeu diversos olhares antipáticos da mídia especializada.

Em relação ao disco: “GLM” é apontado por muitos como o auge criativo da banda, tanto pela estrutura pouco usual das canções quanto pelas enigmáticas letras de Humberto Gessinger. É disparado o disco mais progressivo do grupo, fazendo com que até hoje muitos sites grandes os definem como “banda de rock progressivo”, embora isso não seja verdadeiro. Sua estética é baseada no álbum da figura à esquerda, da banda (essa sim) progressiva Emerson, Lake & Palmer, adaptada com uma sigla dos integrantes do trio – Gessinger, Licks e Maltz – em forma de engrenagem. É o último disco de estúdio da chamada “formação clássica” do grupo. Augusto Licks sairia da banda no ano seguinte, e Maltz em 1995.

O que o torna clássico? Certamente alguém não-iniciado na banda olharia seu set-list e não reconheceria nada ali. Outros discos como “O Papa É Pop” (1990) ou “A Revolta dos Dândis” (1987) geraram mais hits do que esse. Mas basta uma audição para encontrar a resposta: certamente nenhum outro registro do grupo é tão equilibrado quanto esse, e nunca o grupo esteve tão entrosado. A formação Gessinger, Licks e Maltz começou apenas com a “Revolta dos Dândis”, precisando de uma série de álbuns para conhecerem melhor as características de cada um.

Em suma, GLM é clássico não pela presença ou ausência de hits, mas por se constituir como um álbum como poucos fizeram… Afinal de contas, “Another Brick In The Wall” sempre vem à cabeça quando pensamos no Pink Floyd, mas qual álbum é considerado a principal referência? “The Dark Side Of The Moon”.

Ouvindo-o hoje, GLM soa datado, consequência inevitável de qualquer álbum que busque uma sonoridade “moderna”. Foi um dos primeiros álbuns brasileiros a usar o “auto-tune”, ferramenta hoje utilizada exaustivamente nas canções pop. Destaca-se a atuação do guitarrista Augusto Licks, que vai do agressivo para o dedilhado delicado com um timing e feeling indescritíveis. Certamente é uma das melhores performances em um disco nacional que já ouvi, o que é muita coisa em um país com tão poucos bons instrumentistas no rock.

Na temática, GLM também é um álbum de seu tempo. Era 1992, o neo-liberalismo se consagrava como ideologia hegemônica no país, a URSS havia solapado um ano antes e a academia era tomada pelo pós-modernismo, que abalara as certezas. O historiador Fukuyama causou reboliço na História ao pregar o “fim da História”. Todas as letras abordam essa relação confusa do indivíduo para com um mundo cheio de incertezas, onde não se sabe mais para onde vamos, ou para onde devemos ir. Temos progresso tecnológico, mas falta “o pão nosso de cada dia”. Ninguém é igual a ninguém, mas o fato de que todos continuam mentindo nos fazem “uns mais iguais que os outros” (frase emprestada do clássico de George Orwell, “A Revolução dos Bichos”).

Em “Pose”, é contrastada o aspecto decadente, sujo e industrial das cidades com uma espécie de ingenuidade há tempos abandonada em nome do “progresso”. “Canibal Vegetariano Devora Planta Carnívora” é o retrato do caos do pós-modernismo, onde a industrialização, ao invés de sorrisos, causou apenas pesadelos. Pode parecer um retrato um pouco pessimista, mas isso se inverte com “A Conquista do Espaço”, quando o progresso é colocado para servir aos sentimentos humanos.

Impossível descrever as diversas nuances de um disco tão complexo. GLM certamente pode causar certa rejeição, seja pelas letras complicadas ou pelo pouco caráter comercial, mas ainda vale a pena para todos que curtem a ideia de álbum, do conceito em que canções se complementam, se unem para juntas criarem uma única obra. Em certo sentido, todas as canções fluem como se fossem uma só. E é assim que ele pede para ser ouvido: apenas como uma única canção.

9 thoughts on “Revisitando um Clássico: Engenheiros do Hawaii – GLM (1992)

  1. Resenha sensacional!

    Não sei se essa é a opinião atual dele mas em entrevistas antigas o próprio Gessinger admite que esse foi a melhor álbum da formação.

  2. Cara,parabéns, tenho 15 anos e tento ainda hoje,desvendar os mistérios do gessinger,que em “a revolta dos dândis” (álbum) toca em assuntos liberais e ao mesmo tempo critica o sistema,e simultaneamente fala em sentimentos humanos,vey, nem sei,e muita coisa,me um pouco de raiva,pq nao consigo,de forma alguma,entender oque ele quer dizer em uma musica,apenas entendo pequenos versos. E uma coisa eu concordo com você,que as musicas se complementam,formando a obra.

  3. Sem dúvida alguma, esse é o disco essencial para qualquer fã da banda. Um trabalho muito bem feito. Os críticos, com o seu eterno fardo de criticar (pobres almas sem vida), achou td horrível. Nessa mesma época despontavam, para o cenário nacional, duplas como Zeze de Camargo e Luciano e etc, que a Crítica nem ligava, ou seja, bandas ou duplas ruins faziam sucesso pq eram populares enquanto uma banda séria e inteligente era massacrada por esses Críticos frustrados.

  4. Desse disco até o simples de coração com “a promessa” o caos do pós modernismo foi um tema recorrente nos discos dos engenheiros, entendi esse disco dessa forma também.

  5. Sou suspeito pra comentar de Engenheiros do Hawaii, pois curto muito seus discos e, na minha opinião, esse foi o mais bem elaborado. Concordo quando diz que as canções desse album “se complementam, se unem para juntas criarem uma única obra”, e uma obra ‘única’, completaria. Ouvi pela primeira vez o disco inteiro na minha adolescência, e mesmo sem a cabeça feita, lembro como ele me impactou. E ao longo dos anos fui gostando cada vez mais de ouvir. Apesar de “datado” como bem lembrou, não ficou “ultrapassado” e aprova disso é esse artigo. A faixa ‘Túnel do Tempo’ é para mim, sem dúvida, a que alcança o nível mais elevado, daquelas que você escuta de olhos fechados deixando a mente fluir.. escutem ela com especial atenção. E tem hits sim rs, ‘Parabólica’, ‘Pose (Anos 90)’ e ‘Ninguém = Ninguém’ figuravam nas setlists da banda. Gessinger muito inspirado não apenas em suas letras sempre perspicazes e provocadoras, mas também como instumentista, com Licks em sua performance mais madura e Maltz fazendo a batera em harmonia com o disco, ou seja, os três fecharam um disco maravilhoso. Aos que ainda não fizeram uma imersão no GLM, recomendo demais. Agradeço pelo artigo, reverenciando essa obra-prima do rock nacional, sem dúvida! Abraços.

  6. Tem músicas que eu acho sensacionais os “rocks du bão” como ‘Ninguem = Ninguem’ e ‘Até Quando Você vai Ficar’, a linda Parabólica e o Épico Final “Conquista…”. E as outras eu detestei, pelo fato de serem muito ‘pianinho’, ou serem cheias de paradas no andamento ou porque a letra era bem ruinzinha, cheia dos trocadilhos. Pra mim a sensação que traz é um album que começa a essa formação demonstrar cansaço ou perder a direção. Pois francamente: depois de ouvir a empolgação de “Até quando você vai ficar” ir para uma coisa chatíssima como “Pampa no walkman” é coisa de gente que tá meio perdida no mundo.

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